retalhos #07: o inferno atlântico é aqui e agora
o que elegemos quando deixamos o inferno continuar queimando?
quando o brasil foi invadido e colonizado à força, violência, catequização e escravidão pelos portugueses, nos idos de 1500, já éramos o inferno sob seus olhos europeus.
naquela época, como ainda é hoje para muita gente, o inferno era o Outro. o Outro que tinha um corpo diferente, que tinha uma cor de pele diferente, que falava uma língua diferente, que vivia de forma diferente. o Outro, por não ser espelho, era tido pelos dominantes como menor, inferior, subordinado. a colonização e a escravidão são frutos dessa mentalidade com os quais nunca lidamos enquanto nação.
mas, antes de chegarmos no presente, cabe rebobinar a fita um pouquinho.
entre os séculos XVI e XVII, quando portugueses, mouros e outras pessoas eram acusadas em portugal de cometer determinados crimes – como judaísmo, bigamia, sodomia, blasfêmias, proposições heréticas, visões ou feitiçaria –, se julgados como culpados pelo tribunal, era muito possível que sua pena fosse de degredo.
o exílio desses "criminosos" para o além mar da colônia era considerado pior do que a própria morte.
o conceito de purgatório ainda era relativamente recente, como uma espécie de inferno com duração limitada, daí a ideia do cumprimento de penas nas colônias portuguesas. uma vez que a culpa fosse purgada e a pena cumprida, os degredados poderiam retornar para sua terra natal, o paraíso. na cabeça deles, é claro.
o Estado não tardou em ver esse movimento como uma oportunidade. os degredados poderiam corrigir seus crimes com muito trabalho forçado nas terras para onde fossem enviados – um esquema que se construía conjuntamente com a montagem do sistema colonial escravista.
o título genial da dissertação de dimas catai santos júnior já diz tudo: o plano era "colonizar o inferno" e "ocupar o purgatório".
o próprio nome "brasil" vem do nome dado à árvore de pau vermelho, a árvore infernal que roubou o nome antigo e santo da "terra de santa cruz".
não é irônico? somos um país etimologicamente herege.
por essa lógica, então, o brasil remetia – e ainda remete – ao diabo. o inferno não existia naquela época, não da forma como os portugueses associavam nosso território a ele. o inferno é aqui e agora.
por que não seria?
esse é o país que nunca lidou coletivamente com sua história de colonização, escravidão, genocídio, ditadura militar. é um país que prefere esquecer e repetir sua história de violência e opressão ao invés de rememorar e aprender com seus erros.
esse é o país que fez da fome um projeto político, que transformou homens em caranguejos, que ainda hoje permite que sua gente tenha pratos e estômagos vazios, apesar de toda a capacidade que temos para conduzir uma soberania alimentar.
esse é o país que ainda hoje mata três mulheres por dia, em que das operações policiais com fatalidades 84% das vítimas são pessoas negras, em que a violência contra pessoas indígenas cresceu 17% e as invasões e garimpos ilegais em terras indígenas aumentaram em 180%.
não éramos o inferno atlântico, mas nos tornamos.
daqui a algumas semanas faremos escolhas que nos acompanharão pelos próximos quatro anos. é nossa chance de fazer escolhas, de decidir qual o projeto de país que queremos defender e quais os representantes, incluindo os regionais, que queremos que amplifiquem nossas vozes.
não que eu ache que alguém aqui neste batcanal pense diferente (pelo menos eu espero que não), mas não vamos arriscar ir para um segundo turno, por favor. consciência nas urnas. consciência coletiva.
se perguntem: o que elegemos quando deixamos o inferno continuar queimando?
sabrina fernandes e a equipe do tese onze produziram um site bem legal com 11 eixos para candidatos se comprometerem e para avaliarmos suas candidaturas. já tem vários candidatos do brasil todo cadastrados lá, e se você ainda tem dúvidas sobre que candidatos escolher, especialmente pra deputada/o estadual/federal, dá uma olhadinha por lá!
o podcast prato cheio, do joio e o trigo, faz um trabalho sensacional falando de alimentação, saúde, meio ambiente e política. nessa nova temporada, vários episódios são pautados pelas eleições. a erradicação da fome é obviamente uma plataforma de vários candidatos, mas o podcast também traz episódios sobre a indústria de ultraprocessados que só cresceu com a grande inflação de alimentos e os motivos pelos quais o agro odeia lula.
outro podcast que tem brilhado é o tempo quente, da rádio novelo. o último episódio lançado discute o por quê, se os brasileiros aparecem em pesquisas como os mais preocupados com o meio ambiente, viemos parar na contramão da emergência climática.