retalhos #08: os ossos são as memórias que ficam
aquilo que enterramos cria raízes ou é esquecido?
é avassalador pensar no avanço que a extrema-direita teve no nosso país (e no mundo inteiro) nos últimos anos. é deprimente pensar na quantidade de pessoas que ainda apoiam esses genocidas. depois de 686 mil mortos por covid-19? após tantas notícias de corrupção, violência e destruição em massa?
a sensação é de que estamos vivendo um filme de terror. e a pergunta que fica entalada, diante de tudo isso, é: onde está a memória do povo brasileiro?
e isso vale pra tanto – onde está a memória da colonização, da escravidão, da ditadura? do golpe à dilma, do assassinato de marielle franco (entre tantas outras pessoas assassinadas nesses quatro anos), das eleições de trincheira em 2018, do genocídio de um povo com covid-19, das corrupções inúmeras desse desgoverno?
que memória seletiva é essa?
o que me leva a pensar… afinal, o que é a memória?
a memória é tudo aquilo que evocamos do passado. gosto desse verbo, evocar, porque é um verbo ativo. é um verbo que passa pela presença, pela busca, pelo chamamento e pela aparição.
a memória é frágil, como um objeto de cerâmica encontrado enterrado, a passagem dos anos incrustada em sua superfície com todos os sedimentos do solo. a memória só não é mais frágil que o silêncio, mas isso não impede que tentem instaurá-lo, ainda que à força, ainda que através de mentiras.
é por isso que criamos narrativas – para guardar as memórias, para criar novas memórias, para chamar atenção para as memórias, individuais ou coletivas. o passado é um loteamento de memórias e também de ficção, afinal, nossas lembranças passam pela nossa subjetividade e isso as afasta de um ideal linear e objetivo do nosso passado.
a cineasta e atriz canadense sarah polley tem um filme que adoro, histórias que contamos (2012), em que ela revisita as memórias que ela e seus familiares tem de sua mãe, já falecida, e até mesmo reconstrói imagens de um arquivo familiar que ela não tem, usando uma atriz para representar a mãe na sua ausência.
contar nossas próprias histórias é narrar nossas memórias mais íntimas e como poderia ser diferente se tratando de um povo?
é por isso mesmo que o passado da nossa coletividade é construído em conjunto, porque é a partir da ancestralidade que podemos nomear as coisas e tirá-las do abstrato, é a partir de todas essas memórias que construímos a colcha de retalhos do pretérito na primeira pessoa do plural.
as nossas memórias mais íntimas são um caleidoscópio de pequenas ficções, mas as memórias mais íntimas de um povo são as memórias manchadas de sangues e guardadas por ossos.
os ossos que la loba colhe no deserto são o nosso passado, tudo aquilo que não foi incinerado na tentativa de apagar a história. os ossos são o passado, o presente e o futuro de forma contínua.
os ossos são as memórias que ficam. os ossos são os antepassados fincando raízes na terra.
um povo que não conhece ou nega suas memórias e suas raízes, um povo que não honra seus ossos e as histórias que eles contam, um povo que permite que sua história sangrenta se repita uma e outra vez… podemos mesmo chamar de povo?
queria poder dizer que a história vai cobrar, mas quem tem memória sabe que os ossos são enterrados por muitos na esperança de um dia serem esquecidos.
no 13 (!) de outubro, começamos a gravar o documentário híbrido MENARCA, cujo roteiro e direção são assinados por mim e cuja equipe é composta por pessoas maravilhosas que estão construindo esse projeto com muito carinho e muitas mãos, do jeitinho que a gente constrói coisas boas. em breve mais novidades sobre o filme por aqui ❤️
e, desde já, perdão pelo sumiço até o set de gravação terminar 🥶