retalhos #17: como entrevistar fantasmas
uma conversa com thomas edison e outros testemunhos improváveis
talvez eu conte pouco essa história, mas quando eu era mais nova eu entrevistei thomas edison.
ele mesmo, o inventor da lâmpada, do fonógrafo e de tantas outras coisas patenteadas em seu nome. era 2013 e, na época, eu trabalhava no museu de arte moderna da bahia (mam-ba). estávamos trabalhando na segunda edição da revista contorno e meus chefes me perguntaram se eu queria escrever alguma coisa. eu disse que sim, mas que precisa ter uma pauta porque as possibilidades eram infinitas. eles me sugeriram entrevistar thomas edison.
por uma semana, meu hiperfoco foi ler todas as entrevistas com thomas edison que encontrei na internet. em cima de diversas citações e da biografia disponível dele, criei um thomas edison fictício, moldado a partir de suas citações. pra quem escreve, não é uma experiência tão estranha, mas o formato de entrevista fictícia era novo pra mim e eu queria que a voz fizesse sentido com o thomas edison que eu criei na minha mente.
o resultado vocês podem conferir aqui, mas o que mais ficou pra mim nessa história foi a possibilidade de criar a partir de lacunas. de imaginar o possível e o impossível.
essa história me veio à cabeça porque esses dias fui lembrada de que fazem 10 anos que a 3ª bienal da bahia aconteceu. a bienal, que teve como tema a pergunta "é tudo nordeste?", tinha um departamento intitulado "arquivo e ficção" e uma seção chamada "psicologia do testemunho".
arquivo e ficção em uma mesma frase já me remetem à ideia que saidiya hartman traz com a fabulação crítica ao tratar dos arquivos, dos imaginários, das possibilidades, das lacunas, das incompletudes.
isso me leva a pensar não apenas nas histórias de pessoas, reais ou ficcionais, mas também na história dos animais, das plantas, das coisas. recentemente emprestei dois livros a ume amigue, lab girl e autobiografia de um polvo e outras narrativas de antecipação. no primeiro, a cientista hope jahren mescla uma autobiografia com seções lindíssimas com conhecimentos científicos sobre árvores, sementes, folhas e raízes. no segundo, a filósofa belga vinciane despret mescla conhecimentos científicos com ficção especulativa para falar da therolinguística, campo fictício da ciência cunhado pela escritora estadunidense ursula k. le guin.
afinal, quais são as histórias que contamos e que nos são contadas? quais são as histórias que são apagadas? quais as histórias que os animais, as plantas e as coisas não podem contar? como criar a partir das lacunas? como ler os arquivos e tudo aquilo que não foi arquivado? é tudo ficção? como entrevistar fantasmas? ou ainda, como propõe, saidyia hartman, "como a narrativa pode encarnar a vida em palavras e, ao mesmo tempo, respeitar o que não podemos saber?"
há algumas semanas, li um livro que tem reverberado muito, desde diálogos com textos que tenho lido pro doutorado até algumas reflexões que já estavam borbulhando por aqui. é o livro nossas cabanas, da escritora francesa marielle macé. um dos meus trechos preferidos do livro diz assim:
”Nós não temos o hábito de estar à escuta das coisas que não falam; não sabemos como proceder para ouvi-las e para nos reconectar a elas (…); no máximo, sabemos ventriloquá-las, falar em seu nome, tomando-as por um interlocutor único (’a natureza’). Como ouvir, por exemplo, o discurso da água – e especialmente o que o silêncio aterrorizante do Mediterrâneo tem realmente a dizer? Talvez seja suficiente interrogá-lo, convidá-lo a comparecer para depor. (…) A água certamente não pode responder, mas ela pode comparecer ao tribunal, testemunhar, até mesmo acusar, se nos pusermos à escuta disso de que, muito concretamente, seu silêncio e sua opacidade se lembram. A água não se contenta em sepultar, ela retém, conserva, envolve o que nela se enrola, assim ela se lembra e pode, então, testemunhar. Escutar o que ela tem a dizer é escutar esse testemunho, ter que ouvir um testemunho completamente novo (…). Não é apenas que a água esteja gemendo agora, é que ela presta queixa (em francês, a expressão remete à “carregar lamento” de forma literal). (…) Decifrando atentamente esses rastros, podemos transformar o próprio mar em uma testemunha interrogável.”
deixo vocês com a pergunta que tenho me feito ultimamente: como podemos estar à escuta das coisas que não falam?
ou, talvez mais importante ainda, seja nos perguntar: o que deixamos de escutar quando não fazemos perguntas?
falando de imaginar o possível e o impossível, já vivi umas 293 vidas diferentes escutando essa música ao longo dos anos. toda vez que escuto penso numa história diferente.
o genocídio contra o povo palestino segue em curso e, apesar da sensação de impotência, acho que é um momento importante também para escutarmos as vozes da palestina, as histórias que estão tentando apagar. o site bookshop.org reuniu uma lista de diversos livros escritos por autores palestinos. peguei várias recomendações de lá que quero muito ler.
finalmente vi esse final de semana o filme american fiction, engraçado que não tinha pensado como o tema do filme dialoga com essa edição da newsletter, mas parece que as coisas vão se constelando assim mesmo.
fiquei fascinada com essa história do artista britânico ron gittins, um senhor de 79 anos que, ao falecer, surpreendeu a todos com a decoração artística que havia deixado no seu apartamento, algo que parece saído de um livro de fantasia.
descobri dois joguinhos bem legais pra se distrair numa tarde de tédio ou procrastinação: um que você cria um ecossistema dentro de um globo de vidro e outro que você cria um ecossistema com outros elementos naturais possíveis.
e esse site aqui que você clica para criar pontos na tela e ele vai criando uma melodia a partir deles.
que livros, filmes, notícias e coisas tem reverberado por aí? adorei ler as respostas de vocês na última newsletter <3